30 Setembro 2015
O discurso do Papa Francisco às Nações Unidas marcou uma ligeira diferença das alocuções que caracterizaram a atividade diplomática de seu pontificado até agora. Pondo de lado os temas tradicionais do “dever de proteger” e da adoção impensada de “metas de desenvolvimento sustentável”, Francisco voltou-se à noção de “desenvolvimento humano integral”, expressou a sua preocupação para com a colonização ideológica e advertiu os Estados Unidos de que este país se torna uma ditadura em todas as vezes em que tenta impor novos direitos a outros Estados-nações. Nesse sentido, ele citou a defesa dos nascituros e exigiu a liberdade de educação.
A reportagem é de Andrea Gagliarducci, publicada por Monday Vatican, 28-09-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Papa Francisco já havia tratado todos estes temas durante o seu pontificado. Porém eles foram postos de lado, distanciados do núcleo da sua mensagem. Porque ele continuamente tem defendido a justiça social, achou-se que questões da vida estariam de foco. De acordo com muitos analistas, a Igreja estava avançando em direção a um novo futuro “glorioso”, dedicado à mera assistência aos pobres e marginalizados, longe de qualquer batalha cultural e dos gritos dos “guerreiros culturais”.
Esta é a razão pela qual o pontificado de Francisco ganhou tanto consenso na mídia e tanta a atenção do mundo político, especialmente daqueles mais afastados da Igreja Católica. Eles pensaram que finalmente haviam encontrado um aliado na Igreja Católica.
Nas Nações Unidas, o papa surpreendeu a todos. O seu discurso foi, talvez, o mais importante proferido por um papa, assim como nunca houve antes uma tal concentração de chefes de Estado e primeiros-ministros diante de um pontífice – o discurso coincidiu com o primeiro dia da cúpula para a adopção de metas de desenvolvimento sustentável.
Em frente a uma tal audiência, o Papa Francisco voltou-se à noção de desenvolvimento humano integral. No final, o desenvolvimento sustentável preocupa-se com dados e índices, mas não com o ser humano, enquanto que o desenvolvimento humano integral no pensamento católico é a fonte para o desenvolvimento real. O desenvolvimento humano integral leva ao bem comum, o centro do foco da atividade diplomática da Santa Sé.
Isso posto, o Papa Francisco não abandonou a linguagem “politicamente correta” que o mundo secular ama, uma vez que ele sempre tenta superar as diferenças, em vez de reforçá-las. Esta é a razão pela qual ele abre mão de certas coisas ao formular determinadas noções, a fim de alcançar o maior público possível.
Que este foi o teor da viagem aos Estados Unidos ficou comprovado pela forma como ele lidou com a questão da liberdade religiosa. Nos Estados Unidos, as instituições católicas estão lutando para conquistar o direito à objeção de consciência sob o “ObamaCare”, a lei de seguro saúde aprovada sob a atual administração. Esta lei prevê a disponibilidade de métodos anticoncepcionais, de forma que todas as instituições devem prover, nos seus planos de saúde, todas as formas contraceptivas permitidas em lei, incluindo preservativos masculinos e a “pílula do dia seguinte”. O ObamaCare permite um compromisso: a instituição religiosa pode se recusar a pagar as despesas decorrentes do controle da natalidade e o governo terá de financiá-las. Mas isso é um compromisso, não a verdadeira liberdade religiosa.
Embora a questão seja polêmica nos Estados Unidos, o Papa Francisco não a mencionou diretamente em seu discurso durante a cerimônia de chegada na Casa Branca no dia 23 de setembro. Mas naquela noite, após a missa de canonização de Junípero Serra, ele fez uma visita não programada ao convento das Irmãzinhas dos Pobres, grupo que havia apelado contra as provisões obrigatórias do ObamaCare relativas aos métodos anticoncepcionais. O gesto do papa foi simbólico (há, no mínimo, cinco recursos de apelação contra o ObamaCare em todo o país), visando mostrar de que lado do problema ele se encontra.
Até mesmo o discurso ao Congresso, no dia 24 de setembro – formatado para uma audiência tipicamente americana –, seguiu o princípio de não chamar as coisas pelos nomes. Assim, a normalização das relações entre Cuba e Estados Unidos foi descrita apenas como “esforços que se fizeram nos últimos meses para procurar superar as diferenças históricas ligadas a episódios dolorosos do passado”.
Quando o papa decidiu canonizar o Frei Junípero Serra, ergueu-se uma oposição porque Serra é acusado de ter convertidos à força nativos americanos – acusação que muitos outros missionários enfrentam. O Papa Francisco superou a questão apenas mencionando que “aqueles primeiros contatos foram muitas vezes tumultuosos e violentos”, em seguida concluindo que “é difícil julgar o passado com os critérios do presente”.
Os direitos civis constituíram uma preocupação constante para o Papa Francisco: talvez os motivos por trás dela foram os tumultos que se seguiram à morte de Freddie Gray em abril passado enquanto estava sob a custódia da polícia de Baltimore, e por esta razão o pontífice citou Martin Luther King em duas ocasiões – na Casa Branca e diante do Congresso. Lançou-se a ideia de uma possível mudança de última hora na agenda papal para permitir uma visita inesperada ao Memorial Martin Luther King, e houve até mesmo uma tentativa de organizá-la, mas não foi possível se criar as condições para levar a ideia a cabo.
Além de mencionar Martin Luther King – e também Thomas Merton e Abraham Lincoln –, o Papa Francisco igualmente elogiou o exemplo do Dorothy Day. No início, esta mulher estava exclusiva e profundamente envolvida na ação social, mas, em seguida, veio a entender que tudo seria em vão caso sua vida não estivesse centrada em Cristo. É este o caminho que o Papa Francisco espera para a Teologia da Libertação?
O discurso do papa ao Congresso também conteve um ataque ao poder financeiro, o qual, segundo ele, jamais deve prevalecer sobre o poder político. Nesta alocução, ele apresentou o esclarecimento, há muito aguardado, de sua política a respeito do mercado livre, que tem chamado a atenção de inúmeros críticos, especialmente nos Estados Unidos. Baseando suas palavras no Preâmbulo da Constituição Federal americana, o papa observou que “se a política deve estar verdadeiramente ao serviço da pessoa humana, segue-se que não pode estar submetida à economia e às finanças”. E acrescentou: “É que a política é expressão da nossa insuprível necessidade de vivermos juntos em unidade, para podermos construir unidos o bem comum maior: uma comunidade que sacrifique os interesses particulares para poder partilhar, na justiça e na paz, os seus benefícios, os seus interesses, a sua vida social. Não subestimo as dificuldades que isto implica, mas encorajo-vos neste esforço”.
Dessa forma, Francisco esperava refutar as acusações de analfabetismo econômico, vindas principalmente dos Estados Unidos. Infelizmente, ele não chegou a enunciar nenhuma destas declarações, embora elas estivessem contidas na versão oficial do discurso. Parece que foi uma questão de distração – o papa estava lendo inglês, um idioma que ele não sabe bem. As especulações sobre como interpretar este lapso surgiram imediatamente. Mesmo neste caso, tratou-se de uma forma indireta de abordar a questão em jogo.
De volta ao discurso às Nações Unidas, dias antes do discurso uma fonte familiarizada com o mundo diplomático do Vaticano explicou que “na diplomacia, deve-se se contentar em se aproximar o máximo possível da realização; o objetivo não é o máximo”. A fonte deixou entender que nenhuma menção específica sobre o aborto estaria presente na fala papal, mas, sim, o fato de que “ninguém deve ser deixado para trás”.
Depois deste diálogo, algo certamente aconteceu. A alocução do Papa Francisco na ONU foi posteriormente refinada; partes do texto foram suavizadas e reescritas. No final, o discurso assentou-se, antes de tudo, no princípio da transcendência, combinada com a necessidade de uma abordagem diplomática a questões espinhosas. Esta sua abordagem pode parecer “New Age”, na medida em que não menciona Deus, tampouco alguma passagem do Evangelho. Mas esta é a forma como o Papa Francisco quer, posto que, ao tentar falar a todos, ele não quer ofender os não crentes. Por outro lado, ele está certo de que a fé pode ser transmitida indiretamente, através da atração a ela.
Esta abordagem não é nova para o Papa Francisco: ele sequer mencionou Deus nas alocuções ao Parlamento Europeu e ao Conselho da Europa, enquanto se referia à transcendência.
Vale ressaltar que o papa falou, por outro lado, do desenvolvimento humano integral, assim se distanciando da retórica dos objetivos de desenvolvimento sustentável, por trás da qual há também a tentativa de introduzir o direito ao aborto na legislação dos Estados-nações membros da ONU. Francisco não apoia esta causa. Pelo contrário, enfatizou que “a casa comum de todos os homens deve continuar a erguer-se sobre uma reta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística. A casa comum de todos os homens deve edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza criada”.
A referência aos “nascituros” também é importante. Frequentemente, diz-se que o Papa Francisco dá mais importância a questões sociais do que a questões da vida, e, baseados nesse suposto desequilíbrio, os “adaptadores” da doutrina da Igreja estão levando adiante o debate em curso que irá escoar na próxima Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos. Mas, em questões da vida, não há como manipular o Papa Francisco. Mesmo diante do Congresso dos Estados Unidos, ele falou da defesa da vida humana em todos os estágios de seu desenvolvimento – ou seja, desde a concepção até a morte natural.
Essas passagens específicas do discurso do Papa Francisco à ONU podem dar início a uma nova fase em suas alocuções diplomáticas. O estilo sempre será o estilo próprio de Francisco, o que significa que ele vai prestar muita atenção ao possível feedback, às possíveis respostas a toda e qualquer declaração – observemos que ele elogiou o acordo nuclear entre os EUA e o Irã sem referência direta a ele. Para além desta abordagem, ele também pode estar desejando voltar-se novamente em direção a uma “diplomacia da verdade”, quer dizer: uma diplomacia que testemunha aquilo que é verdade aos olhos da Igreja, especificamente o seu abrangente ensinamento social, que vai desde o aborto ao desarmamento integral. Isso significa que a Igreja não vai permanecer em silêncio, na medida em que pode haver uma vantagem diplomática ao falar com franqueza e ousadia.
A Santa Sé já lançou mão da abordagem de uma diplomacia da verdade no intuito de defender os cristãos perseguidos. Em um movimento inédito, Dom Silvano Tomasi Maria, Observador Permanente da Santa Sé nos escritórios das Nações Unidas em Genebra, promoveu e concluiu, em março deste ano, a publicação de uma declaração conjunta que explicitamente menciona a perseguição aos cristãos. E as Nações Unidas se comprometeram em pôr em prática iniciativas concretas de ação para defender os cristãos perseguidos de uma maneira tão decidida que havia a esperança de que o papa fosse avançar no enfrentamento do problema, lembrando a ONU do compromisso assumido. Francisco fez algo parecido com isso, e dedicou uma das passagens mais precisas de sua fala às perseguições, com referências específicas aos conflitos em curso no Sudão do Sul, no Oriente Médio, na Síria e na Ucrânia. Esta é uma das poucas passagens de seu discurso sem referências indiretas.
O papa também pediu respeito pela Carta das Nações Unidas. Esta passagem, também, indiretamente se refere a uma questão polêmica: aquela dos chamados “novos direitos”. Mas ela também falava de uma necessária liberdade de educação.
Nas palavras do Papa Francisco: “Se se respeita e aplica a Carta das Nações Unidas, com transparência e sinceridade, sem segundos fins, como um ponto de referência obrigatório de justiça e não como um instrumento para mascarar intenções ambíguas, obtém-se resultados de paz. Quando, pelo contrário, se confunde a norma com um simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, abre-se uma verdadeira caixa de Pandora com forças incontroláveis, que prejudicam seriamente as populações inermes, o ambiente cultural e também o ambiente biológico”.
Nesta última passagem podem-se vislumbrar muitos pontos de vista. Ela inclui o chamado à paz do Beato Paulo VI, a preocupação de Bento XVI para com o desrespeito à lei natural, a pressão de São João Paulo II para a aplicação dos direitos humanos, a preocupação geral da Igreja de que se estão constantemente impondo “valores” sobre as nações, e uma preocupação geral de que o mundo carece de espiritualidade – o que, por sua vez, pode conduzir a uma perda de razão (Bento XVI falou longamente sobre isso).
O papa abordou todos estes temas a partir do ponto de vista do desenvolvimento – e isso igualmente explica a sua preocupação para com a questão ambiental. Ele articula o seu raciocínio com base em dados sociológicos concretos. No entanto, a alocução na Organização das Nações Unidas tem algo mais. Esse algo faz pensar que até o Papa Francisco pode agora estar convencido de que precisa ir além da mera instantaneidade das gerações atuais. Hoje, parece que ele está se movendo no sentido de ponderar princípios. Será que esta é a sua verdadeira direção? E, em caso afirmativo, como o mundo secular irá reagir?
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Papa Francisco: Em direção a uma nova diplomacia? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU